Infertilidade masculina: um luto não reconhecido

É a partir do laço com outro humano, que o marca com seu desejo e sexualidade, que o sujeito se constitui, é inserido numa genealogia e no mundo que o cerca. O desejo de tornar-se pai está atrelado às relações do sujeito com as suas primeiras figuras de amor e com a sua própria constituição como sujeito (Farinati, Lopes & Dornelles, 2015).

Durante muito tempo, a dificuldade reprodutiva de um casal esteve localizada no corpo da mulher e os fatores masculinos não eram questionados. Entretanto, com o avanço da tecnologia os diagnósticos evidenciaram a mesma porcentagem para homens e mulheres – 40%, sendo que os 20% restantes referem-se a ambos. Portanto, o fator masculino é responsável por 50% dos casos de infertilidade.

O significado da contribuição do homem e da mulher na reprodução apresenta-se de modo desigual. A maternidade está associada com nutrir e dar à luz, enquanto a paternidade ao engendramento e criação (Alkolombre,2008). No imaginário social, a masculinidade encontra-se fortemente associada com virilidade, potência e fertilidade e, quando o corpo masculino passa a fazer parte desse cenário, aspectos da identidade do homem tornam-se ameaçados, desestabilizando a imagem que tem de si próprio.

Receber o diagnóstico de infertilidade costuma ser uma experiência devastadora que, assim como um terremoto, abre fendas no psiquismo dos indivíduos. Constitui-se num obstáculo à realização do desejo de ter um filho e do desejo narcísico de imortalidade (Dornelles & Corrêa, 2022), provocando lutos ancorados no próprio corpo (Alkolombre, 2008). Silva et al In Casellato (2020) refere que o luto na infertilidade ocupa o lugar de um luto não reconhecido. Ser incapaz de gerar uma prole pode levar o homem a sentir-se incapaz de cumprir com o seu papel social. Há um sentimento de incompletude que leva à renúncia de planos e esperanças.

Um filho possibilita ao homem um vir-a-ser e lhe assegura um lugar na história das gerações que o antecederam e o sucederão na cadeia genealógica (Farinati, Lopes & Dornelles, 2015). O filho sonhado representa uma nova vida, recomeços, uma possibilidade de ressignificações e de preencher as expectativas dos sonhos e desejos dos pais. Nesse contexto, todos os âmbitos da vida do casal são afetados. É a morte de uma história escrita nos sonhos, nos planos, na maneira de viver a vida que segue. É romper com a expectativa de família sonhada, com um futuro sonhado. É um vazio simbólico (Silva et al In Casellato, 2020).

A possibilidade frustrada pela infertilidade de transmitir valores, de cumprir com uma obrigação social, de manutenção do casamento, de fortalecimento do vínculo conjugal e de realização do projeto de vida, desencadeia sentimentos de tristeza, inferioridade, rejeição, medo, desilusão e estigma em relação ao cônjuge (Amado, 2012). O homem infértil também se sente culpado, inútil, com sentimentos de menos-valia, o que frequentemente interfere na vida sexual do casal (Daniluk, 1988). Por vezes, a mulher o protege evitando expor sua condição de infértil nos contextos sociais e familiares, o que pode levar o casal a fechar-se em torno de um “pacto de mentira (Olmedo, 2004).

Estudos nacionais evidenciam que os homens apresentam maior dificuldade em aceitar o diagnóstico de infertilidade do que as mulheres, o que pode estar relacionado à sentimentos de impotência e ao que caracterizaria a masculinidade (Borlot & Trindade, 2004; Calixto, 2000; Tamanini, 2003), constituindo-se num período de luto, perdas e inadequação social (Webb & Daniluk, 1999). Falar sobre infertilidade com seus amigos ou pessoas próximas, ou procurar um atendimento especializado são algumas das dificuldades encontradas entre os homens (Hammarberg, Baker & Fisher, 2010).

Entretanto, Straube (2019) destaca que apesar da conotação pesarosa, falar sobre infertilidade também pode ser uma oportunidade de desabafo emocional. Em sua pesquisa, a autora refere que o dito popular “homem não chora” foi desencorajado pelos entrevistados, os quais se mostraram sensibilizados e choraram ao rememorar e comunicar suas experiências, embora muitas vezes os sentimentos que envolvem a condição de infértil se apresentem de forma dissimulada. Há tendência de mostrar que, apesar da incapacidade procriativa, tudo corre bem, alinhando-se ao estilo de vida contemporâneo que cultua o sucesso e a normalidade.

Cabe destacar que embora o diagnóstico de infertilidade seja atribuído ao homem, considera-se que a infertilidade é do casal. O sofrimento psíquico permeia o vínculo entre o casal e o transcende, podendo paralisar outras áreas de investimento. O destino do que se cria a partir desse acontecimento, do desconhecido, depende dos recursos psíquicos e desejos de cada um. O vínculo conjugal, fruto do que é produzido entre o casal, dos encontros e desencontros de duas subjetividades, torna-se depositário das angústias, frustrações, cobranças, sentimentos de tristeza, indignação, desesperança, raiva, desamparo etc. (Dornelles & Corrêa, 2022).

A partir desse momento, os casais decidem o rumo a seguir: se farão tratamento por técnicas de reprodução assistida, se recorrerão à adoção ou se seguirão a vida sem filhos. Acredita-se que em qualquer uma das situações, faz-se necessário oportunizá-los um espaço de escuta e reflexão, no qual possam ser acolhidos de forma cuidadosa, sensível e atenta às questões subjetivas e singulares inerentes ao momento. A atuação de psicólogos, psicanalistas e psiquiatras junto a esses casais pode se dar pela inserção na equipe multiprofissional da clínica de reprodução assistida ou em consultório particular. Nesse encontro, cabe ao profissional de saúde mental, através de uma escuta qualificada, compreendê-los e ajudá-los a fazer escolhas possíveis que deem sentido à sua história e que sejam uma oportunidade de ressignificá-la.

 

Referências

Alkolombre,P. (2017). Paternidades contemporâneas: desejo de filho no homem e técnicas reprodutivas. In. Holovko, C. S. e Cortezzi, C. M. (Orgs.). Sexualidades e gênero. Desafios da Psicanálise (pp.283-296). São Paulo: Blucher.
Amado, P.M.F.V. (2012). A vivência do homem infértil que deseja ter filhos. Dissertação (Mestrado em Enfermagem de Saúde Materna e Obstetrícia). Escola Superior de Enfermagem. Coimbra, Portugal.
Borlot, A. M. M., & Trindade, Z. A. (2004). As tecnologias de reprodução assistida e as representações sociais de filho biológico. Estudos de Psicologia, 9(1), 63-70.
Calixto, R. A. B. (2000). O desejo de ter filhos na reprodução assistida: Novas configurações familiares (Unpublished master’s thesis). Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Campinas.
Daniluk,J. (1988). Infertility: intrapersonal and interpersonal impact. Fertil Steril, 49, 982-890.
Dornelles, L.M.N. & Corrêa, E.P.L.C. (2022). Ressonâncias dos tratamentos reprodutivos no vínculo conjugal. In. Giacon, F. (Org.). Contribuições interdisciplinares no contexto da reprodução assistida. (pp. 51-71). São Paulo:Viva Editora.
Farinati, D., Lopes, H.P. & Dornelles, L.M.N. (2015). Aspectos emocionais da vivência masculina da infertilidade. In. Temas contemporâneos de psicologia em reprodução humana assistida. A infertilidade em seu espectro psicoemocional (pp. 43-55). São Paulo: Livrus Editorial.
Hammarberg, K., Baker, H.W.G., & Fisher, J.R.W. (2010). Men’s experience of infertility and infertility treatment 5 years after diagnosis of male factor infertility: A retrospective cohort study. Human Reproduction, 25(11), 2815-2820.
Olmedo,S.B. (2004).También es assunto de hombres: el por qué de la infertilidade masculina. Buenos Aires: Editorial Atlántida.
Silva, E.S.F., Caixeta, H.R., Correia, J.S. & Soares, S.M.S.R (2020). Luto na infertilidade após tentativas sucessivas de tratamento. In. Casellato, G. (Org.). Luto por perdas não legitimadas na atualidade (pp. 215-230). São Paulo: Summus Editorial.
Straube, K.M. (2019).” Sonhos infertilizados”. A vivência do estigma da infertilidade. In. Infertilidade, estigma e tratamentos reprodutivos. Da família pensada à família vivida (pp. 83-112). Curitiba: Juruá.
Tamanini, M. (2003). Novas tecnologias reprodutivas conceptivas à luz da bioética e das teorias de gênero: Casais e médicos no sul do Brasil (Unpublished doctoral dissertation). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
Webb, R.; & Daniluk, J. (1999). The end of the line: infertile men’s experience of being unable to produce a child. Men and Masculinities, 2(1), 6-25.

Lia Mara Netto Dornelles

Psicóloga, Pós-doutora pela University of Warwick (Inglaterra), Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS),Especialista em Psicologia Clínica (CRP/RS); Especialista em Psicanálise Vincular- casal e família, pelo Instituto Contemporâneo de Psicanálise e Transdisciplinaridade; Coordenadora Nacional do Comitê de Psicologia da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana (biênio 2023-2025); Coordenadora do Núcleo de Reprodução Assistida, Diretora de Publicação e docente do CIPT.

 

Imagem de Alex Green no Pexels

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